“A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Essa frase cantada por Elza Soares na música “A carne” é, na verdade, uma metáfora para a real situação das relações raciais estabelecidas em nossa sociedade. Na véspera do Dia Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado nesta sexta-feira (20), pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) fazem uma reflexão sobre a desigualdade racial no país.
No Brasil, a população negra é a que mais é presa e a mais assassinada. O informativo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que em 2017 a chance de uma pessoa preta sofrer homicídio era 2,7 vezes maior do que uma pessoa branca. No sistema penal, a maioria das pessoas encarceradas tem cor definida. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), dos 657,8 mil presos em que há a informação da cor/raça disponível, 438,7 mil são negros (66,7%).
Existe um profundo e sistemático silencialmento sobre a história do povo negro a partir da perspectiva das relações raciais, como aponta a docente do Instituto de História da UFF, Ynaê dos Santos.
“Foi fabricada uma interpretação oficial do Brasil como um país desprovido de conflitos de raça e classe, criando uma imagem errônea de harmonia racial. O que não condiz com os movimentos, episódios e personagens que constituem nosso passado. As consequências dessas distorções são enormes, desde a ausência de personagens negros em livros didáticos até a percepção rasa da história da escravidão e do seu legado, e podem ser tomadas como um projeto nacional que mascara o caráter principal das relações raciais na nossa história”.
A pesquisadora salienta que construir essa perspectiva que marginaliza e diminui a centralidade da condição estrutural do racismo dificulta, inclusive, que a sociedade brasileira – sobretudo a população branca – se perceba como parte de um sistema racista, que cria exclusões e violência por um lado, bem como uma série de concessões por outro. “Um sintoma dessa realidade é que o debate racial é levantado, principalmente, pela população negra, que não tem outra alternativa para lutar contra as situações de desigualdade que ela vive. Já as pessoas brancas se engajam ou não nessa discussão dependendo do quanto reconhecem os próprios privilégios”.
Ynaê ressalta a importância da compreensão acerca do conceito de antirracismo no combate à desigualdade racial. “Reconhecer o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira e o seu lugar nesse sistema é o primeiro passo. A partir daqui, as ações da população negra e branca se diferenciam, uma vez que essas pessoas experimentam interdições ou regalias a depender da sua cor. É necessário romper com a dinâmica que alicerça as discriminações raciais identificando o lugar que se ocupa nessa estrutura. Ou seja, é preciso caminhar contra o racismo de maneira consciente e intencional”.
Para a pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-INEAC/UFF) Rosiane Rodrigues, há uma reflexão que as pessoas brancas devem fazer: “o que você faz para reforçar seus privilégios na sociedade? É preciso assumir que no Brasil o racismo não opera apenas na macroestrutura estatal. Ele tem presença cotidiana no café da manhã das famílias, uma vez que também se expressa através de uma micropolítica que ancora as relações sociais mais básicas. Vidas negras importam porque as vidas brancas jamais estiveram ameaçadas. Como disse Angela Davis: não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, ressalta.
Por outro lado, Ynaê acrescenta que o racismo está se tornando uma pauta efetiva para todos aqueles que desejam uma sociedade mais justa e igualitária, embora ainda tenha muito a caminhar. “Com as políticas de inclusão racial e ação afirmativa, setores da sociedade precisaram se reinventar. Nas universidades brasileiras em especial, a entrada de mais jovens negros de trajetórias diferentes daquelas que a academia estava acostumada a lidar, está mudando muitas perspectivas eurocêntricas que atravessavam o ensino superior. Esses alunos enfrentam questões reais de desigualdade para permanecer na faculdade. Esse cenário aponta que o debate racial nas universidades deixa de ser apenas um “objeto de pesquisa” das Ciências Humanas, para começar a ganhar corpo na vivência política da universidade”.
Na discussão sobre as desigualdades raciais, Rosiane concorda que houve avanços significativos nos últimos anos. “É preciso reconhecer que a luta antirracista evoluiu, ainda que não o suficiente. Com as cotas, a presença de pessoas pretas nas universidades aumentou consideravelmente e a produção científica também tem se aberto para novos saberes. Hoje em dia, existem pesquisadores negros produzindo conhecimentos nas mais diversas áreas, o que é um progresso proporcionado por décadas de uma luta capitaneada pelo movimento negro”, completa.